O conceito expositivo delineado para o Campo de Concentração do Tarrafal, ilha de Santiago (Cabo Verde), com o título “A Glimmer of Freedom” (Um Lampejo de Liberdade), objetivou encarar o espaço sob um olhar laboratorial que analisa a História, questionando as vivências e as realidades que nela coexistem. As intervenções artísticas de sete artistas convidados são elementos de reflexão, criação, produção e interação que, em coexistência com espaço, pretendem tornar tangíveis a identidade e a memória do fortificado lugar de 1700 hectares.
A génese do espaço fica simbolicamente marcada pelo aval de um despacho emitido pelo opressivo ditador Oliveira Salazar pelo qual a construção da “Colónia Penal” foi ordenada, num local remoto bem longe dos olhos do público e destinada a presos políticos portugueses. A 29 de outubro de 1936 chegavam os primeiros 151 “deportados”. Devido às circunstâncias geográficas e orçamentais a construção arquitetónica da Colónia Penal prolongou-se ao longo dos anos. Neste primeiro período, a Colónia Penal do Tarrafal ficou conhecida como o “Campo da Morte Lenta” justificado pelas péssimas condições climáticas, de saúde, de alimentação e um regime prisional marcado por uma extrema violência psicológica e física, onde era comum os prisioneiros serem forçados a cavar trincheiras apenas para as encher de novo, vezes sem conta, enquanto os seus corpos se tornavam um terreno fértil para os mosquitos, vetores de doenças graves. A isto se acrescentava a falta de pessoal de cuidados de saúde qualificados e de medicamentos. Mais de 360 antifascistas portugueses resistiram a tais situações desumanas e opressivas ao longo dos 18 anos de operação, causando cerca de três dezenas de mortes, incluindo de jovens. Em Janeiro de 1954, a Colónia Penal foi encerrada graças às forças antifascistas em Portugal e à pressão internacional, na sequência da vitória dos aliados na II Guerra Mundial. Enquanto isso, os movimentos revolucionários de libertação, seja em Portugal, seja nas suas colónias em África, ganharam força e ânimo e o regime repressivo português tomou medidas para enfrentar estas resistências antifascistas, reabrindo-a sob o nome de “Campo de Trabalho” usado para aprisionar líderes das guerras pela independência de Cabo Verde, Angola e Guiné-Bissau. No total foram lá presos mais de 340 antifascistas portugueses e cerca de 230 nacionalistas africanos.
Fernando Tavares, ex-preso político, rememora o ambiente mais duro do Campo e que aniquilava a alma de um homem, a “frigideira”, uma cela caracterizada por períodos alternados de altas e baixas temperaturas. Durante os 13 anos de funcionamento, até a data do seu encerramento, no dia 1 de maio de 1974, o Campo de Concentração do Tarrafal foi palco de sofrimento, lutas, conquistas e vitórias. Ancorado nestas convicções, o conceito expositivo “A Glimmer of Freedom” pretende, através das intervenções artísticas e da análise das vivências do lugar, sublinhar a importância do espaço e da sua memória. Tenciona interpretar e descodificar as dicotomias entre a Resistência/Existência Histórica e a Existência/Resistência das vivências atuais do lugar.
A Glimmer of Freedom — Um Lampejo de Liberdade
No âmbito da exposição “A Glimmer of Freedom”, Patti Anahory com Pedestais de [ex]clusão e Volumetrias Vazias [de] Memórias intervém no espaço, utilizando os elementos e estruturas pré-existentes que inicialmente foram idealizadas para o percurso museológico, e hoje contribuem como elementos para a construção espacial expográfica. Patti Anahory questiona as vivências do espaço seja num contexto Patrimonial, seja no contexto Antropológico, criando volumetrias que pretendem interligar narrativas no eixo histórico e social.
A intervenção de Irineu Destourelles é sustentada por uma base analítica que surge da sua própria experiência no trabalho desenvolvido na Africa Ocidental, analisando e explorando as perpetuações de um discurso colonial em confronto com os contextos sociais contemporâneos. Neste seu trabalho explora a dualidade entre prisioneiros e captores, colonizados e colonizadores.
No contexto de integrar uma intervenção artística, onde a reflexão é trabalhada sob o ponto de vista de um local desconhecido presencialmente, e que é caracterizado pela história dramática, Miguel Leal aceitou o convite de realizar a intervenção a partir deste desafio, o desconhecimento do espaço físico. Sendo este o ponto de partida, o lugar desconhecido, que por sua vez, foi um sentimento experienciado por todos os presos que por lá passaram, a intervenção artística reflete aspetos sobre a dualidade das existências neste contexto: ilha apetecível – ilha tenebrosa, lugar exótico – realidade árida, lugar paradisíaco – cenário apocalíptico, paraíso perdido – terra longínqua, tenebrosa e enigmática, exílio forçado – resistência liberdade.
Se ao mesmo tempo a imensidão e a carga da memória se impõe ao espaço, o seu preenchimento convida e desafiar os visitantes a relacionar-se com o vazio e com o imaginário. Nesse contexto, a palavra de ordem para Djam Neguin é ocupação. Uma ocupação performativa que se propõe a si mesma ser uma experiência num espaço sensorial, admitindo que cada corpo-espetador possa redimensionar o seu percurso. A realidade e o quotidiano das gentes que habitam, a memória, são fatores decisivos e inspiradores, que servem de motor incisivo para cada uma das performances. O desafio maior será não apenas trazer elementos que lhes são identitários, mas trazê-los a eles mesmos, as suas histórias, os seus jeitos e os seus corpos a ocuparem, a atuarem, a manifestarem pela e com a arte os seus “vislumbres de liberdade”.
O projeto de Nelson Santos, Tchon Elevado ao Cubo, é a representação figurada da desconstrução de três cubos. A trilogia alude simbolicamente ao corpo físico, ao corpo mental e ao corpo emocional que se encontram simbolizados através da concêntrica e progressiva abertura de três caixas. A analogia abordada para a intervenção “Tchon Elevado ao Cubo” está ancorada na exigência de liberdade representada simbolicamente pela tríade existencial Corpo, Alma & Espírito que é transportada conceptualmente para o processo vivenciado pelos prisioneiros antes, durante e depois da passagem pelo Tarrafal. O desdobramento do cubo em cruz, no plano horizontal, pretende ainda servir de alusão e homenagem aos que da lei da vida se libertaram, através da morte… Pois ainda que derradeira, a morte não deixa de ser uma libertação.
A série Ferrugem de César Schofield Cardoso pretende questionar o contexto social atual do “Campo da Morte Lenta”, colocando-o em contexto e análise, refletindo sobre as medidas Sociais e Culturais que o Estado de Cabo Verde objetiva concretizar para o lugar. A série subdivide-se em três intervenções: “Mar Cercante”, “Ciclo Perpétuo” e “Água Dura”. Nestas três intervenções, o Antes e o Agora são parâmetros constantes de análise. Abrangem questões de isolamento e de prisão; discursos diretos e indiretos de poder, opressão e exclusão, novas formas de violência direta ou indireta, a reflexão sobre a água (o ritual da sua busca, recolha, uso e reutilização, enquanto objeto de consumo), tão vital como o sangue.
“A Glimmer of Freedom” é uma exposição de arte contemporânea que questiona, analisa, preserva e divulga o espaço, através da elaboração, criação e dinamização de novos olhares no contexto histórico.
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O projeto expositivo “A Glimmer of Freedom” agradece a colaboração do IPC – Instituto do Património Cultural (Cabo Verde) pela cedência do espaço e apoio logístico; da Câmara Municipal de Tarrafal (Cabo Verde) pelo apoio logístico no local; e do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (FLUP, Portugal) pelo apoio prestado no levantamento de dados e pelo apoio logístico.
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O projeto expositivo “A Glimmer of Freedom“/”Um Lampejo de Liberdade” ficou em primeiro lugar entre as 423 candidaturas enviadas por 53 países, após seleção do júri do apexart International Franchise Program 2016-17, composto por 200 elementos de todo o mundo.
Sobre o apexart International Franchise Program
O apexart International Franchise Program é uma iniciativa da apexart, uma associação artística sem fins lucrativos norte-americana que visa dar a curadores independentes e artistas emergentes e estabelecidos a oportunidade de proporem e produzirem uma exposição a acontecer em qualquer lugar do mundo, com exceção de Nova Iorque. Fundada pelo artista Steven Rand em 1994, a apexart concretiza esta missão através de exposições, um programa internacional de residência, uma iniciativa de publicação de livros, programas públicos e eventos.
As propostas vencedoras (na edição deste ano – a nona de sempre – houve quatro) recebem um financiamento que pode ascender aos 10 mil dólares e apoio administrativo para a sua implementação no terreno.
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