…numa Morada Temporária
Habitar como caminhar. Habitar como respirar… Inspirando profundamente sabendo que logo em seguida se expirará todo o ar… sabendo que será necessário reservar e renovar um tempo de suspensão. Habitar o tempo curto como quem conscientemente se vê a atravessar um biombo. A exposição de Marzia Bruno encontra-nos nesses segundos que florescem rápidos, enraizados nas experiências de memórias associadas subtilmente a objetos e a sensações momentâneas. Muito fugazes, são “territórios afetivos e sensitivos” que mutuamente se embriagam e se deslocam no tempo, levemente, como pétalas soltas.
Os vazios da casa/abrigo são provocados pela escultora para iniciarem diálogos com as obras da série “Cose di Casa”: amadurecem nostalgias – todo o espaço à nossa volta se desenha como interrogações. Os momentos entrelaçam-se, alguns com ímpeto fugidio, outros com o desejo de permanecer. As memórias sobrepõem-se em transparências e criam aspirações de baloiços apoiados em ramos de árvores indefinidas.
O branco, que lentamente tudo une, deixa vogar o aroma das sombras dos percursos e anos vividos em Itália e a eles acorrem os tons e calor de Cabo Verde, a luminosidade e aragem de Aveiro e os reflexos do rio, do Porto, espaços permanente registados nas histórias de criação de Marzia Bruno.
Sentindo o corpo em viagem, vivendo os lugares como quem atravessa uma moldura (ou um biombo), a escultora vai ao encontro de “campos” de poesia que transforma em trechos de apontamentos de memórias, discretos cenários que a acompanham numa itinerância assumida. Contudo, como o ar que se desloca, tudo se transforma: os objetos-registos de acontecimentos reorganizam-se, transferem sensações entre si. Por vezes, alternam identidades.
Marzia Bruno nasceu em Itália e fez o Curso de Escultura na Accademia di Belle Arti de Florença. Posteriormente fez o Mestrado em Estudos Artísticos, com especialização em Estudos Museológicos e Curadoriais, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e o Doutoramento em História da Arte Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
A ligação à cidade de Aveiro, para além da vivência quotidiana, intensificou-se com a investigação realizada no âmbito do mestrado (inventariação e análise da coleção da Arte Pública da cidade) bem como com a experiência de curadoria concretizada na exposição Identidades: Circunstâncias Transversais no Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, em 2013. A curadoria é uma das áreas de interesse e reflexão de Marzia Bruno o que a conduziu a várias realizações das quais destaco “A Glimmer of Freedom” para o ex-Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde), “Identidades: Âncoras de Passagem” no Convento de São Francisco na Ribeira Grande de Santiago (Cabo Verde) e “Identidades: Variáveis Convergentes” na Casa-Museu Abel Salazar” (S. Mamede de Infesta). A reflexão sobre as temáticas da Identidade são uma presença constante na obra de Marzia Bruno que a atual exposição de novo expressa.
Esta morada temporária ressoa nas sombras e permite que as obras se alonguem, se entreguem um tempo alternativo… Por vezes parece querer transformá-las em ramos e flores, outras vezes impõe o silêncio. Outras vezes ainda chama “os vazios” a criar novas narrativas, como assemblages, que concentram memórias e histórias do percurso da autora como escultora, curadora, historiadora, inacessíveis a um olhar alheio mas provocadoras… Sempre itinerantes. Esta morada temporária deixa-se fundir com as obras; as obras modelam o espaço com formas, aragens e sons – das terras percorridas, das conversas em floração, dos objetos de um quotidiano discreto ou das ideias exuberantes trocadas ao luar – e nós somos convidados a Habitarmos a exposição como uma travessia, cada instalação ou obra individualizada implicitamente inundada de melancolia e de desejos-projetos.
10 de julho de 2020
Maria Leonor Barbosa Soares
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